sexta-feira, 24 de julho de 2009

The Reader



"Se um livro é uma janela,
Uma porta de luz para o lar,
Não será a mais bela
A que tem vista para o mar?"
Luis Paulo Magalhães


Um dia destes, ao voltar de casa dos meus pais, fi-lo "à moda antiga".

Antecipando um certo prazer, daqueles que se estragaram por excesso, ao ponto dos abandonarmos para só mais tarde redescobrir, roubei um livro das prateleiras do meu antigo quarto e fui para a paragem do autocarro.

Talvez seja estranho falar nestes termos das leituras com que palmilhava todos os quilómetros feitos em transportes públicos. Livros, revistas, jornais... tudo me servia para atenuar o sentimento de revolta pelo que na altura classificava como tacanhez paterna por não me agraciarem com um automóvel, evitando mesmo que ipirangasse um "Vou-me embora de casa!" em vez do mais usual "Mãe, o que é o jantar?".

No entanto, além de mediadores das injustiças decorrentes da ancestral característica paterna de não entenderem as reais necessidades dos filhos adolescentes/jovens adultos, é certo que chegava quase sempre mais tarde, mas também quase sempre mais "rico". Uma dessas leituras era obviamente a Surf Portugal. Da capa à contra-capa, entre os textos que lia duas vezes ou os que saltava depois das primeiras linhas, fazia a viagem casa-faculdade.

Não sei se gostei dos textos do Gonçalo Cadilhe à primeira leitura, mas sei que a dada altura passaram a ser eles a principal razão por dar aqueles trinta quilómetros mensais sempre por bem empregues. Quando as suas crónicas da SP passaram a livro, comprei-o imediatamente, relendo prazenteiramente, mesmo adivinhando palavras ou frases inteiras. Se tivesse de nomear um, um e apenas um, responsável pela forma como vejo, sinto, faço ou escrevo o surf, acho que seria o autor dos textos do Pulsar das marés e dos Sete mares. É aqui que entra o Pedro Adão e Silva.

Acho que já o conhecia do Ondas antes de ele iniciar a sua participação na SP. Mas certo é que, para mais sendo eu próprio secreto aspirante a cronista viajante de uma revista de surf, quando li o primeiro texto da coluna O Sal na Terra devo ter pensado que talvez fosse melhor não me despedir imediatamente do meu trabalho. Numa altura em que o GC terá partido no encalce dos passos de Magalhães, os textos do PAS preencheram esse lado melancólico e poético do off-surf, com o saber e mestria que encontra no surf propriedades químicas semelhantes à do hidrogénio: está em tudo e em todo o lado.

O PAS lançou um livro homónimo dessa sua coluna, onde reúne as suas melhores crónicas. E, porque além do mais usou a caixa de email aqui do blog para nos enviar o convite/press releass do lançamento (que só alguns dias depois descobrimos nas catacumbas do google groups para o qual o mail direcciona - Mountain View, we have a problem...), achei que merecia uma recomendação directa aqui da malta. Quer para quem não conhece, quer para quem como eu possa querer adivinhar palavras e até frases inteiras, parece-me uma boa leitura para a vossa poltrona favorita.

O livro que trouxe de casa dos meus pais, reacendendo a chama, foi o No princípio estava o mar, do GC. O do PAS quase que merecia que largasse o conforto do carro em casa por uns dias. Mas como vou trabalhar uns tempos para o interior profundo e oprimido, longe do mar e da família, O Sal na Terra talvez venha a servir para ultrapassar distâncias num outro meio de tranporte: a imaginação...


Fotografia de Tariana Mara

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Olha... vou surfar!


O odor já paira no ar... estou nóvamente em countdown para as férias, mas das de cariz permanente. Vou surfar, ler, surfar e relaxar. Compensar algumas lacunas que fui deixando junto dos meus herdeiros ao longo deste último ano. Já referi que ía surfar...?

Ao meu redor as pessoas andam doidas. Más caras, stress profundo, gripes Z e descapitalização numa panóplia de contextos que ultrapassam os económicos.

Por me faltarem meia dúzia de dias aqui no trabalho, comecei a engrenar a pesada máquina em modo automático.
'É pá e agora...?' 'Vais fazer o quê pá...?' 'O país está caótico...!!! O que vai ser de ti pá...?'

Por norma, nestas fases cíclicas que se me atravessam no trilho, o mar calha sempre a estar bom. Sou relegado para surfadas de sonho, por norma com nenhum crowd, o offshore desperta e num alcance de 30min disfruto das mais épicas condições... daquelas que bastantes semeiam uma vida inteira para usufruir dela nos derradeiros momentos da sua existência - surfistica pelo menos.

O carro tem a revisão feita e o gasóleo desceu. Tenho um quiver simpático de duas manas giras e começo agora a estar nóvamente de pés quentes mesmo com água a 15ºC e sem botas.

Regressam as ilucidativas e circunstanciais conversas de estacionamento, o contacto com a natureza e o doce inalar matinal da marezia. É por certo, o único dia-a-dia repetitivo que conheço que no entanto não roça a monotonia.

Algumas propostas pairam no ar e terei que analisar sériamente algumas delas.

Se não te atendi o telefone, fica certo que nos salgados entretantos que se avizinham poderás contar sempre e sem grandes pressas com um alegre...
'Olha... fui surfar!'

terça-feira, 21 de julho de 2009

A Insustentável Leveza do Surf


Fotografia de Thomas Campbell

Decido não tomar banho! Ainda tenho surf na pele e prefiro assim. Bem sei que é um receio irracional, este meu, de se me ir o prazer que ainda carrego no sabão e na água do duche, mas levar a surfada do dia, à noite para a cama, dá-me melhor dormir.

Quem vai ao mar sabe do prazer de que falo, mesmo aqueles que tomam banho - certamente de melhores hábitos que os meus - e que não se rendem às incertezas, que lhes surgem, contrárias à razão. Nada melhor me ocorre para enfrentar qualquer insónia que a leveza de um corpo cansado e o prazer que nos invade e perdura das nossas danças de mar. Fechamos os olhos e continuamos lá, naquela musicalidade tão próxima do sonho que a realidade nos entrega quando melodicamente seguimos a deslizar.

Quando me deito é este sabor a surf que ainda quero ter nos lábios, que mudos, ainda assim soletram de cor as vagas que de dia nos embalaram… e de repente, é vê-las ganhar mais um metro em altura e outros duzentos em comprimento… sem sabermos que já estamos a sonhar.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Elogio da loucura


Ilustração de Vera Costa

Era bizarro, mas nós já não estranhávamos. Já nos tínhamos habituado a ver aquele homenzinho, de quando em vez, a passar por nós pedalando todo nu na sua ‘pasteleira’. Ao que parece bastava exceder-se um pouco mais na bebida que lá se ia a roupa, e depois, como que a consagrar a desinibição alcançada, pegava na bicicleta e dava a volta da praxe pelo meio da cidade.
Estes episódios, apesar de tudo, não lhe eram levados a mal. Desde moço que a gente da terra o conhecia – a ele, ao seu desequilíbrio e àquele seu hábito particular.
Nessas alturas, à sua passagem, os homens já só o apontavam rindo com pena
– Olhem, lá vai o Asdrúbal!
– Coitado do Asdrúbal!
sentenciando-lhe mais a bebida do que a nudez
– Dá cabo dele, o vinho!
Já as mulheres olhavam de soslaio para o que jurariam mais tarde nem sequer ter reparado, benzendo-se e corando com tão mal empregue pedaço de/o homem
– Coitadinho. Tivesse ele juízo!
fazendo contas de cabeça…
E nós, miúdos, talvez mais astutos, apenas reparávamos como ele seguia tão direitinho para tão proclamada bebedeira. Vai na volta e esses seus estados de embriaguez nem eram assim tão profundos; muito possivelmente eram-lhe apenas uma desculpa para se revelar tal como era, seguindo fora de eixos mesmo que assim tão direitinho, só que no caso do Asdrúbal essa questão de se despir à sua verdadeira essência tinha
(convenhamos)
um carácter demasiado literal.

O Viriato era outra personagem sui generis lá da terra, a meu ver bem mais inofensivo – que só lhe dava para pegar na guitarra e cantar o fado – mas por fazê-lo constantemente, a qualquer hora e por tudo e por nada também ia mantendo, tal como o Asdrúbal, uma relação próxima com a guarda, que não raras vezes era chamada para lhe pôr fim à cantoria
– Hão-de cá vir que tenho o Viriato à porta! ‘Tá’ bem que o homem até tem boa voz, mas já são duas da manhã, ele não se cala e amanhã trabalho!

Lembrei-me destes dois a propósito de uma outra figura: uma pobre rapariga, de rico sorriso, que de certa forma, no seu desequilíbrio, partilha deles algumas características.
Costumava vê-la na Costa quando ia surfar, aparecia a rir
(sempre a rir)
a baloiçar na mão um daqueles baldes pretos, vulgares, como os que se usam nas obras para acarretar cimento, com o fato de neoprene lá dentro.
Tal como ao Asdrúbal e ao Viriato via-a despida e musical a passar; despida, mas não nua – despojada, apenas, do supérfluo - nada de autocolantes, nem de marcas, nem cenário ou pose descontraída e falsa de quem vê no surf uma moda - muito pelo contrário, que depois do fato enfiado no corpo, fazia o mesmo a um saco de plástico colorido nos cabelos, dando-lhe uns pequenos nós ao redor da cabeça para que não se fosse com as ondas.
De certa forma ela representava da forma mais pura a alegria tão básica de quem vai surfar. Sorrindo
(sempre sorrindo)
via-a entregar todo o seu empenho para se levantar nas ondas mais pequenas do inside; e quando conseguia, nada de pose descontraída, antes se elevava toda hirta, abrindo bem os braços para se manter equilibrada e assim, de saco de plástico azul ou rosa na cabeça, seguia como o Asdrúbal – fora de eixos mesmo que assim tão direitinha.
Levando a máxima de ‘só-mais-uma-e-já-saio’ literalmente à exaustão, só o cansaço a retirava do mar. A fazer lembrar, mais uma vez, o Viriato, que mesmo quando o ‘Sôr’ Guarda aparecia a resmungar imponente por detrás do bigode
– Queira acompanhar-me por favor.
ele ainda lhe tentava dar a volta e cantar mais uma
– Em dó ou em sol?


((em papel na FreeSurfMagazine nº12, Junho 2009))

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Slow Shape



À primeira até vos pode soar estranha a ideia, mas a concepção desta prancha coincide e muito com a última receita de Risotto que segui cá em casa.

Qualquer dia posso-vos passar a receita, mas basicamente a ideia consiste em deixar apurar o arroz a cada cace de caldo acrescentado, aos poucos, ao longo de uma boa meia-hora - pode demorar, pode dar trabalho e pedir paciência, mas para quem aprecia boa comida vale bem toda a atenção despendida.

Com esta comparação não estou a dizer que o Filipe Hage não despacha trabalho, apenas que ele entrega toda a atenção a cada prancha fabricada empregando o tempo necessário a cada fase para alcançar os melhores resultados.

Mais uma vez pode parecer tolice, mas esta forma de agir do Filipe, responsável e perfecionista lembram-me as directrizes que orientam a filosofia da Slow Food, que em contraposição à Fast Food se opõe à padronização do gosto, ao ritmo frenético da vida actual, defendendo a necessidade de informação do consumidor e protegendo os processos e técnicas tradicionais de bem-fazer.

A principal razão porque encomendei a prancha ao Filipe, para além de lhe conhecer a habilidade como shaper, foi por esperar esta sua atenção meticulosa... vamos então esperar e ver o resultado final.