Ilustração de Vera Costa
Mesmo ali, em plena luz do dia e à vista da falésia onde se reflectem as minhas ondas favoritas... Mesmo assim, onde o caminho é um só – direitas, só direitas, mais ou menos compridas consoante a perfeição com que os elementos se conjugam – e o crowd, espalhado ao longo da onda, vai dando ares de guarda de honra à passadeira azul que percorro... perco-me facilmente. Mesmo.
Falo do tempo, que deixa de ser um só e se divide no que sinto e no realmente decorrido. E torna-se já num atraso previsto este recorrente imprevisto, qual vigésimo nono dia de Fevereiro em ano bissexto, também ele um acerto do desfasamento do tempo real com o sentido, mas perfeitamente indefinido, em que me vou encontrando perdido.
Diz a canção 'o tempo passa depressa enquanto nos divertimos'...
Certo, certo, mas não é o caso. Ou melhor, muitas vezes será esse o caso, mas não é sempre. E se não é sempre então tem de haver outra explicação. Porque eu perco-me no mar mesmo em terra firme... e nem sempre divertindo-me. E agora que procuro a explicação vejo que vem de trás, lá bem de trás, desde aquelas imagens recortadas de revistas com que forrava cadernos ou esboços desenhados nas margens de folhas. Eram apenas os primeiros indícios, esboçando e forrando não um gosto ou um estilo mas antes pensamentos.
Pensamentos... talvez sejam eles a razão. Sim, talvez eles, deslizando sobre aquelas e outras imagens como eu deslizo ao longo do crowd da minha praia favorita, expliquem o porquê dessa diferença, esse atraso. Um atraso, cujos instantes posso descrever com notável clareza, perfeitamente consciente, mas que não sinto. Ou, pelo menos, não pressinto até ao momento em que me deparo com o tempo real e percebo que, como agora, mais uma vez, me perdi sabendo perfeitamente onde estou, onde estive, ondeando...
((paginado na FreeSurfMagazine nº17, Novembro 2009))