quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

“Nunca é tarde para se ter uma infância feliz” *


 fotografia de Morgan Maassen

A infância tem os cabelos soltos ao vento e areia colada por entre os dedos dos pés.

Chega-me assim à cabeça esta frase, inteira, de uma só vez. É uma ideia simpática, fico contente de se acercar assim em palavras que soam bem. No fundo é de ti que a recolho, és tu que neste momento ma inspiras.

Observo-te apaixonado… como um tolo – passe a redundância. Sigo-te as voltas que desenhas por entre dunas e que interrompes aqui e ali para te debruçares, dedicada, a alguns troncos e paus para a fogueira que eu sugeri e que tu já começas a colocar em prática. Distraído vou lutando com o fato de neoprene; tento desembaraçar-me de uma manga que me agarra sanguinária, aparentemente perco, mas meio descontrolado lá a consigo soltar. A minha imagem, absurda e frenética, em contraste violento com a leveza da tua… tão leve que segues assim descalça

(toda tu tão descalça)

de sorriso a confundir-se com a brisa da tarde: sereno, genuíno, intemporal.

Penso que a praia também se apaixona por ti! Em carícias de vento envolve-te e (des)compõe-te o cabelo devolvendo-to num desalinho de menina que te deixa, aos meus olhos, ainda mais bonita.

Finalmente consigo retirar o fato e visto qualquer coisa. Sinto, no entanto, que mesmo depois desta troca de indumentárias o surf permanece em mim. Uma espécie de película residual, quase invisível, quem sabe de propriedades anti-gravitacionais, que me deixa acompanhar-te na leveza, na ausência de peso, que me disfarça de ave marinha.

E voamos, de facto, feitos miúdos pela praia até conseguirmos acender, finalmente, o nosso lume.
Sentados na areia, junto ao fogo, assistimos a um espectáculo inesperado, surpreendentemente, à nossa frente, a madeira incendeia-se multicolor. A água do mar, que impregnou a madeira de sais, confere cor às chamas em jeito de pozinhos de perlimpimpim - labaredas amarelas e azuis ardem divertidas e é nos teus olhos que vejo, agora, soltarem-se faúlhas laranja e verdes… mesmo antes de te beijar.

* - título de uma música do Jorge Palma 

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Crónica dos Bons Malandros


Pedro, já vi que a tua aplicação da velha máxima do Alferes Santos não serve a todas as tarefas delicadas, como por exemplo à descrição de idas memórias.

Na altura aceitei a superioridade da tua argumentação dado que, além de te saber rapaz de alguns recursos surfísticos, sacar dos ensinamentos do Alferes Santos é golpe para deitar por terra três programas inteiros das Escolhas de Marcelo, dois discursos do ex-presidente Jorge Sampaio e meia opinião do Rui Santos! Mas a aplicação em vão das suas dogmáticas saídas tem consequências tão nefastas como querer emendar o excesso de sal no arroz, deitando-lhe água a meio da fervura… Nesse sentido, de conter os danos, repor a verdade dos factos e mais um ou outro ponto fora da ordem do dia que me ocorra entretanto, venho relembrar que o dono desta 5’0” noseless de quem o nosso co-blogger Magalhães fala, é outra das particularmente caricatas personagens com que nos cruzámos no Magreb e não o “todo sorrisos”.

Trago para isso à baila o Furriel Fonseca, instrutor de recruta do Alferes Santos, que permaneceu na história dos Caçadores Especiais bastante aquém dos seus reais feitos, como por exemplo o ensinamento de tudo o que o filósofo e artesão Alferes sabia. Reza a história que o furriel meliciano, versado na Arte da Guerra de Sun Tzu quanto no Dicionário Vernacular das Caxinas, se viu prisioneiro num povoado nas imediações de Bogotá. Desarmado das suas Lucilias (uma AK47, mais limpa e lustrada que o serviço de Natal Vista Alegre para 48 pessoas da Rainha de Inglaterra, uma pistola Beretta, com igual trato mas com o acréscimo sentimental de ter sido herança familiar da parte do tetra-avô paterno, assim baptizadas depois de ter assistido à mestria com que BB King tocava a sua, numa ida edição do Festival de Jazz de Minde), salvou-se pelo canivete suíço, comprado aos americanos na base das Lajes (e que de suíço pouco tinha, excepto a cor de chocolate de leite, fruto da ferrugem que o cobriu por inteiro mesmo antes de chegar à fronteira entre a Colômbia e a Venezuela).

Habituado a enfrentar a morte olhos-no-escuro-por-baixo-do-capuz, mas incapaz de suportar a própria consciência por deitar lixo que não num Ecoponto, guardou o canivete atrás da orelha, mal sabendo que tal gesto lhe havia de salvar a vida. Ao fim de pouco mais de duas horas em solo colombiano, quando se julgava perfeitamente integrado no seu disfarce de traficante, não chegou a ver o fundo do copo de shot de tequila na tasca “El Gringo”. Acordou no meio da selva, nos braços de uma mulher que lhe humedecia os lábios com um pano e a quem ainda teve tempo de perguntar o nome. “Ing-quê?” foram as suas últimas palavras antes de mais uma soneca induzida à socapa...

Mas voltando ao que interessa, os seus captores, conhecedores de várias técnicas de tortura medievais mas incapazes de discernir as diferenças entre uma verruga e aquele pedaço de ferrujem atrás da orelha, permitiram-lhe manter consigo a chave da sua soltura. Quando as tropas americanas o encontraram ainda inanimado entre nos destroços bombardeados do seu cárcere, foi o dito canivete que o identificou como português ao invés de nado e criado na Colômbia, como aparentava. É que, sabiam os G.I. Joes, estes canivetes eram usados como as tatuagens pelos Yakuza, mas entre um pequeno grupo de pescadores da terceira, irmãos de mar e de sangue. Sim, o canivete veio das Lajes, mas pelas mão de um desses pescadores dissidente, que em último recurso o jogou como aposta numa mão perdedora de poker… Como tantas outras vezes, o furriel ganhou.

Ora, se ainda aí estás e como eu já perdeste o sentido desta prosa, concluo então a coisa respondendo à tua “dedicação às tarefas delicadas como complemento a melhor afinação visual” com o sábio dizer com que o Furriel Fonseca culmina todo e qualquer raciocínio: “diz-me como é que aplicas o wax, dir-te-ei se completas as rasgadas”. Sei que para bom entendedor seis mil caracteres são mais do que suficientes, mas como para o Blogger é mais do que os quatro mil e noventa seis permitidos nas caixas de comentários, esclareço que é como quem diz: se essa confusão de identidades é táctica para invocares a necessidade de, quanto antes, juntares a mesma pandilha e renovares os objectivos com que as ditas memórias foram criadas, rechaçando assim este possível laivo de Alzheimer como a padeira de aljusbarrota aviou os nuestros hermanos, desde já te informo que tenho na manga dois ou três destinos de igual monta.

E desta vez, por causa das coisas, terras de picos triangulares!


Fotografia de Chris Burkhard, 2066


sábado, 4 de dezembro de 2010

Nostalgias

Não consigo dizer que 'a minha vida se complicou' apesar de ser um excelente móte para a justificação obligge para esta ausência literúrgica. Num país onde 700.000 pessoas desesperam por trabalho seria ofensivo.
Longe vão os dias passados ao sabor dos ventos e das marés. As tardes de conversa de circunstância com os demais comparsas de ondas desapareceram. A adrenalina de escrever em linhas de água salgada foi substituída pelo marasmático quotidiano do trabalha-dor comum. De quando em vez regresso a esse passado que inexplicávelmente me parece tão distante e sonho. E há dias resolvi agarrá-lo e surpreendi o meu chefe com um sorriso malicioso e uma deixa do género:
'- na próxima quinta feira vou estar doente'.
Logo pela fresca meti-me no meu pequeno yaris de serviço e em vez do azimute asfáltico rumo à metrópole, percorri esta estrada de terra acima ilustrada, com a parede azul lá ao fundo que almejei abraçar por semanas a fio mas claro está - com Murphy sempre em grande - invariávelmente o mar começava a piorar à sexta feira, fim de semana de meter dó e depois começava a melhorar à segunda feira enquanto me afundava em filas do IC19 e/ou A5.


As suspensões batiam a seco nas pequenas crateras, o meu coração acelerava - não com pena do mini toyota mas sim - por desesperar por um bafo de sorte e pela incerteza. Ao chegar ao fim do arco-íris respirei fundo e agradeci...


O frio depressa se rendeu a meus pés e deliciei-me por três longas horas só mas feliz. Não apareceu ninguém... nem durante nem depois. Apenas com a minha nova quad e um pato arraçado de mergulhão. Cantei, dancei e entubei... e tomou-me claro está por parvinho pois não liguei nadinha ao peixe, apenas à água. Por volta das 16h ainda fui ao dentista fazer um check-up - pois foi essa a minha desculpa laboral - e nem a broca me demoveu da certeza de ter sido uma aposta acertada.

E então deu-me vontade de imortalizar essas horas aqui no cantinho abandonado pelo Rudas_Ex_Desempregado algures no longínquo ano de 2009... LOL

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Cinquenta, cinquenta.

Never Falling Pinto a esbanjar estilo em Tifnit

Estava em condições de jurar que tinha a melhor prancha do mundo e tinha acabado de o perceber. Que me perdoassem a imodéstia. Tinha até algumas dúvidas que o artesão que a encontrou dentro do bloco de foam, tivesse destreza suficiente para repetir o feito. Ouço muitas vezes dizer aos escritores que, aquando do processo de escrita de certas obras, tem a clara percepção de que estas têm vontade própria e que estes servem apenas de veículo transmissor para algo que não controlam. Ora eu achava que se tinha passado o mesmo com o meu foguete e que a mão humana não teria condições de o replicar.

Rails, bottom, deck, espessura, largura e comprimento, tudo tão certo. Mexendo um milímetro em qualquer destas variáveis e estou em crer que, embora não passasse directamente à categoria de toco, não teria a mesma magia. Até a escolha pelo amarelo se revelava a mais acertada pois estava a torná-la mais rápida.

Era mais ou menos neste processo de apreciação que me encontrava quando ele passou por mim dentro do seu meio-fato carregando a sua meia-prancha em direcção àquele mar de meio-metro completamente glass. É certo que naqueles últimos dias os line up´s que partilhávamos com os locais marroquinos não eram propriamente compostos por pranchas branquinhas-cor-de foam nem por neoprenes nipónicos topo de linha, mas entrar com metade de um longboard pareceu-me já claramente exagero. Desejei-lhe boa sorte em pensamento não conseguindo evitar um sorriso de troço que me foi devolvido de forma espontânea pelo próprio e pela sua meia dentição.

Aqueci e fui para a água juntar-me Pedro para mais uma sessão de esquerdas na terra das direitas, para infortúnio dos regulares da comitiva. O pico quebrava mesmo em cima de uma rocha e, embora pequenas, as ondas insistiam em quebrar prefeitas. Fui directo e dirigi-me sem rodeios para o pico. Ao meu encontro vinha uma do set na qual já desenhava linhas mentais mesmo antes de começar a remar, mas à segunda braçada o meu estado zen-ó-contemplativo foi interrompido por uma ladainha marroquina que me chegava da direita.

-“Tajine Salameco Salamalon!!!” – berrava quem mais senão o artista do cinco zero noseless a dropar em cima da pedra. Puxei a prancha para lhe dar a passagem e fiquei a assistir por trás a um surf competente até meio da onda onde a secção mais mole o obrigava a enterrar o nose e ao subsequente espalho inevitável. Ria-se e voltava para o pico a remar a mil à hora para me dar a volta e ficar à espera da sua próxima meia-onda. Ao voltar das minhas apanhava-o a ele nas suas curtes. O espalho era sempre certo, mais atrás ou mais à frente, mas o que é certo era que até lá chegar ele fazia umas curvas bonitas que evidenciavam conhecimento profundo do equipamento. Não conseguia evitar rir e pensar nas vezes em que tinha culpado pranchas e quilhas pela minha falta de unhas.

Serviu-me Tifnit para perceber que para além de espessuras comprimentos e larguras, o drive do equipamento também se alimenta da vontade do surfista, e que esta não há shaper que dimensione.

domingo, 24 de outubro de 2010

Making a short story long


Hoje surfei. Outra vez.

Camané, A Guerra das Rosas


domingo, 1 de agosto de 2010

Lines From a Poem

“Sabemos quanto agarrados estamos ao surf quando, na noite anterior a um novo swell, nos damos conta de ter acabado de limpar e repor o wax a cada uma das pranchas que pensamos vir a usar no dia seguinte.” – Se não era assim era parecido… Foram do Slater estas palavras, li-as algures há muito tempo atrás numa revista e ainda hoje, quando limpo e reponho wax nas pranchas, me revejo nelas.

Parto de férias daqui a uns dias e hoje fui o que andei a fazer: derreti-lhes ao sol o wax velho, raspei-o o melhor possível, lavei-as e repus-lhes uma nova camada. É terapêutico e curioso, enquanto lhes retiramos de cima as surfadas velhas também lhes vamos traçando as novas curvas que desejamos e antevemos.

Hoje, uns dias antes de realmente partir, já surfei um bocadinho em cada uma das praias que pretendo passar, e, para a coisa durar, entretive-me na tarefa:

sábado, 31 de julho de 2010

"If it doesn't come bursting out of you
in spite of everything,
don't do it.
unless it comes unasked out of your
heart and your mind and your mouth
and your gut,
don't do it.
if you have to sit for hours
staring at your computer screen
or hunched over your
typewriter
searching for words,
don't do it.
if you're doing it for money or
fame,
don't do it.
if you're doing it because you want
women in your bed,
don't do it.
if you have to sit there and
rewrite it again and again,
don't do it.
if it's hard work just thinking about doing it,
don't do it.
if you're trying to write like somebody
else,
forget about it.
if you have to wait for it to roar out of
you,
then wait patiently.
if it never does roar out of you,
do something else.

if you first have to read it to your wife
or your girlfriend or your boyfriend
or your parents or to anybody at all,
you're not ready.

don't be like so many writers,
don't be like so many thousands of
people who call themselves writers,
don't be dull and boring and
pretentious, don't be consumed with self-
love.
the libraries of the world have
yawned themselves to
sleep
over your kind.
don't add to that.
don't do it.
unless it comes out of
your soul like a rocket,
unless being still would
drive you to madness or
suicide or murder,
don't do it.
unless the sun inside you is
burning your gut,
don't do it.

when it is truly time,
and if you have been chosen,
it will do it by
itself and it will keep on doing it
until you die or it dies in you.

there is no other way.

and there never was."

Charles Bukowski, So you want to be a writer*



Hoje surfei.


*Retirado daqui

segunda-feira, 10 de maio de 2010

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Pessoal e transmissível


Já pensei que o surf fosse algo estritamente individual. Que, apesar de todo o tipo de vivências conjuntas e trocas de experiências que proporciona, se pudesse reduzir apenas a um simples binómio entre Homem e Natureza. Um nós que é um eu, um eu e a minha onda. E aí, onde os outros têm a importância de um qualquer estranho com que nos cruzamos numa rua movimentada, assentavam as bases para este feitiço em que se torna a nossa relação com o mar.

Já pensei isso. E que esse feitiço era recíproco, num registo quase bipolar de quem quer o bem e quer o mal e afinal não quer nada... pois a dimensão dos elementos que se conjugam numa onda a quebrar nos reduz à mais pura e solitária insignificância, quando ao mesmo tempo que nos eleva à categoria de semi-deuses, por essa conjugação se dar num determinado momento, num determinado local, em nosso benefício.

Já pensei isso, já senti isso. O acto de surfar como uma moderna e válida teoria egocêntrica de um universo particular... O nervosismo, desde o imperceptível ao do limiar do pânico, revelando-se a chave para acelerar-nos de vida num big-bang, repetido ao expoente da loucura, viciante na sua simplicidade de meios face à complexidade do seu fim: uma pedra filosofal de boa onda, de bom feeling... Mesmo que assente num enleado jogo de desafios a que por vezes sucumbimos... mas que tantas mais os superamos. Eu sentia-o assim.

Mas, mesmo sem na altura o saber, o meu surf não acabava em mim. Não o acto em si. Não o meio mas sim o fim.

Quando o surf nos invade outros aspectos da vida, já não é de pranchas nem fatos que falamos, mas sim dessa boa onda, esse bom feeling, que trazemos do mar e que, naturalmente, partilhamos. Mesmo com estranhos e em ruas movimentadas.

Se há coisa que o surf me parece transpirar por todos os poros é que, a dada altura e mesmo que seja mais difícil do que estávamos à espera, temos de largar certos preconceitos, aproveitar a boleia and just go with the flow. Não ser contra, ser completo. E não ‘excepcionalmente’ ou ‘porque é Natal’, mas porque dar pode ser tão bom como receber.

Já pensei que o surf fosse algo
estritamente individual.
Estava errado.
Ainda bem.



Ilustração de Vera Costa








((impresso na FreeSurfMagazine nº18, Dezembro 2009))

terça-feira, 9 de março de 2010

Aves do Paraíso



Madredeus, Alfama



Sempre tive dificuldade em referir-me à senhora que ajuda em casa dos meus pais por ‘empregada’ ou ‘mulher-a-dias’. Não por ver algum desrespeito ao seu trabalho, nada disso. Mas porque a Dona Isabel rapidamente ultrapassou os limites que essas designações encerram, sendo quase família. Assim, da mesma forma que quando me refiro a um familiar acrescento ao nome o grau de parentesco, quando quero contar algum episódio em que entre a Dona Isabel, acrescento sempre o dela, o de senhora que ajuda lá em casa.

Pouco depois de me ter iniciado nestas coisas do mar visto do cimo de uma prancha, houve um dia em que a Dona Isabel me disse que havia ido passear no paredão da Caparica e reparado nuns quantos surfistas, a boiar feitos gaivotas. Que até me tinha tentado descobrir lá no meio, mas que mesmo à distância, não lhe pareceu ver a minha prancha. ‘O que é que eles faziam ali se não havia ondas?’, perguntou-me no seu jeito brincalhão, mas desconhecendo, por certo, que no peito de um marrequeiro também bate um coração. Devo-lhe ter esboçado um sorriso e respondido com o óbvio ‘banhar de prancha’, enquanto meio envergonhado pensava nas vezes que outros me terão visto também a limpar a minha...

Ultimamente, à medida que afazeres profissionais e familiares me vão reduzindo o tempo de surf, dou por mim a trocar de bom grado a incerteza de uma próxima sessão de ondas perfeitas pela garantia de uma outra, já amanhã, que inclua apenas uma lavagem dessas, de chassis e alma - não vejo a hora em que o meu filho comece a andar e todas as mensagens subliminares que lhe digo ao ouvido surtam o seu efeito: come a papa que é preciso ter força para chegar ao out-side!; no Comboio do Zoo cabe o elefante, a girafa e pelo menos três longboards...; olha lá aquele point-break de direitas no extremo da Ilha das Cores...

Como comecei tarde, sem aspirações a surfista profissional, não me importo que algum dia, no calor da descrição do que é surfar uma onda e por respeito aos que o são com S maiúsculo, venha a ter de corrigir aos meus interlocutores alguma inferência daquelas mais directas, tipo ‘ah, fazes surf? Então és surfista’ por um ‘Sim, faço surf. Mas fico em terra quando há tempestade no mar’.

Mesmo invernos rigorosos como este têm os seus dias de bonança. E nesses dias, qual gaivota, isso há-de querer dizer, de novo, mais tempo de mar.



“[...]Há outra entrada no paraíso/ Mais apertada/ Mais sim senhor/ Foi inventada por um anão/ E está guardada/Por um dragão[...]”
Pedro Ayres Magalhães, O Paraíso


Fotografia de Corey Arnold, The Birds

segunda-feira, 1 de março de 2010

Nervoso, mas sem medo de voar!


O avião só parte daqui a umas horas mas já sinto a efervescência do nervoso "miudinho" no estômago.

Esta não será uma viagem de surf, até que porque o destino não se presta a tal nesta época do ano, mas, ainda assim, sinto-me como que a apanhar a do set.

Tenho andado a falhar! Deixado ondas boas por surfar, andando pelos spots errados, desatento às condições ou simplesmente desligado da essência do mar - que cedo me ensinou a encontrar oportunidades mesmo quando se apresenta mexido e complicado.

Por vezes sinto que gastamos imensa energia a resistir à vida, a contrariar o que tão obviamente desejamos fazer... seguir nela sem direcção, acertando simplesmente o passo ao trilho que vislumbramos.

Pode ser que venham melhores, mas eu apanho já esta!

'té já!

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

As Roupas de Jorge




Tive a boa fortuna de travar algumas valiosas amizades no curto percurso de vida que me trás até aqui. Umas conquistei-as na infância, outras ganharam-me mais tarde. Um destes dias em conversa com um dos de sempre escutei-lhe excertos de relatos de seis meses de vida cigana lá para os lados do Índico. Foi para lá com tudo o que lá deixou e trouxe mais do que alguma vez tinha tido. Coisas que a matemática que por cá estudo teima em não compreender.
Surfou ondas que cá nunca tinha surfado, aprendeu línguas que nunca tinha ouvido e viu nas palavras do próprio, fotografias em movimento.
E fez o seu caminho até aqui onde me disse que para ser perfeito só faltavamos lá nós, os de sempre.

Teimo em aprender com os erros dos outros e assim gostava que fossemos lá juntos. Bora?

Mais do que as minhas roupas, são Jorge os meus amigos?

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Eternal Sunshine of the Spotless Mind


Ilustração de Vera Costa

É fácil perder-me no mar.

Mesmo ali, em plena luz do dia e à vista da falésia onde se reflectem as minhas ondas favoritas... Mesmo assim, onde o caminho é um só – direitas, só direitas, mais ou menos compridas consoante a perfeição com que os elementos se conjugam – e o crowd, espalhado ao longo da onda, vai dando ares de guarda de honra à passadeira azul que percorro... perco-me facilmente. Mesmo.

Falo do tempo, que deixa de ser um só e se divide no que sinto e no realmente decorrido. E torna-se já num atraso previsto este recorrente imprevisto, qual vigésimo nono dia de Fevereiro em ano bissexto, também ele um acerto do desfasamento do tempo real com o sentido, mas perfeitamente indefinido, em que me vou encontrando perdido.

Diz a canção 'o tempo passa depressa enquanto nos divertimos'...

Certo, certo, mas não é o caso. Ou melhor, muitas vezes será esse o caso, mas não é sempre. E se não é sempre então tem de haver outra explicação. Porque eu perco-me no mar mesmo em terra firme... e nem sempre divertindo-me. E agora que procuro a explicação vejo que vem de trás, lá bem de trás, desde aquelas imagens recortadas de revistas com que forrava cadernos ou esboços desenhados nas margens de folhas. Eram apenas os primeiros indícios, esboçando e forrando não um gosto ou um estilo mas antes pensamentos.

Pensamentos... talvez sejam eles a razão. Sim, talvez eles, deslizando sobre aquelas e outras imagens como eu deslizo ao longo do crowd da minha praia favorita, expliquem o porquê dessa diferença, esse atraso. Um atraso, cujos instantes posso descrever com notável clareza, perfeitamente consciente, mas que não sinto. Ou, pelo menos, não pressinto até ao momento em que me deparo com o tempo real e percebo que, como agora, mais uma vez, me perdi sabendo perfeitamente onde estou, onde estive, ondeando...



((paginado na FreeSurfMagazine nº17, Novembro 2009))