quinta-feira, 23 de abril de 2009

A minha primeira vez


Ilustração de Vera Costa

Naquela primeira noite acendi cada uma das velas que tinha levado. Com uns pingos de cera quente e algumas das pedras roladas apanhadas à tarde na praia, distribui-as, cerimoniosamente, à entrada da tenda. Ali, meio dentro, meio fora, estendi-me sobre o saco-cama, deslumbrado pelo momento e pelos efeitos de luz e sombras trémulas que se projectavam à minha volta. Afinal, não tinha sido de todo insensato levar aquela meia dúzia de velas por entre os muitos quilos de carga.

O cenário que acabara de montar e que eu via concluir-se com o pinhal, com os sons da noite e do mar, pelos cheiros mornos do Verão – tudo aquilo ali tão à mão – representava, na altura, uma enormidade para mim! Porque eu ainda era mesmo muito miúdo. E quando fui nesta minha primeira viagem de surf, a inexperiência e a ingenuidade acompanhavam a pouca idade. Esta extraordinária liberdade era uma sensação completamente nova para mim, estar ali sozinho, por minha conta e risco, era visto romanticamente como um novo abrir de página, um primeiro passo rumo a uma vida de aventura.

Recordei, como ainda há uns dias atrás, naquele princípio de Verão, eu tinha idealizado aqueles momentos, sonhando as noites e o encontro próximo com um mar ordenado, glass e ondas perfeitas e compridas. A avidez foi tal que acabei por partir antes do meu grupo de amigos, que presos pelos testes, só dois ou três dias depois poderiam seguir. A pressa destinou-me, no entanto, a levar muito do material de campismo que poderia ter sido repartido por todos um par de dias mais tarde. E como tal, para além da minha própria roupa e prancha de surf, fui eu que tive de levar também a tenda – um daqueles iglos enormes de quatro pessoas – panelas, uns quantos pratos e até um pequeno fogão – iríamos ser nós a cozinhar, seria mais barato e para mim, pelo menos, parecia ter muito mais piada.

Menos graça tinham os consequentes quase trinta quilos de bagagem, que já à entrada para o autocarro me faziam entender que este tipo de incómodo era sempre omisso nos relatos idílicos das viagens a ilhas tropicais que eu lia nas revistas de surf, lá só aparecia o inevitável mar ordenado, glass e ondas perfeitas e compridas. Na minha visão inocente, um destino tropical e a Costa Vicentina tinham o mesmo nível de exotismo, pouca diferença faziam.

Quando cheguei a Sines, por volta das onze e meia da manhã, já ia informado que teria de apanhar um outro autocarro até ao parque de campismo, o que desconhecia era que ele só partiria por dali a quatro horas. Esperar esse tempo era demasiado para tanto entusiasmo. E depois de devidamente esclarecido quanto à dezena de quilómetros que faltavam trilhar, resolvi seguir a pé, completamente carregado, na ideia que com a maior das facilidades alguém me daria boleia.

Um par de quilómetros à frente, já exausto, debaixo dum um sol escaldante, sob o peso da carga e sobre o alcatrão que parecia derreter-se debaixo dos chinelos, percebi que uma prancha debaixo do braço não ajudava ninguém a parar. Quando já pensava em escondê-la atrás duns arbustos à berma da estrada, um casal de velhotes, milagrosamente, cessou a marcha uns metros à minha frente. Talvez tivessem um neto da mesma idade, pensei, mas mais provável era que apenas tivessem ficado comovidos pela minha pobre figura. Com simpatia ajudaram-me a colocar a tralha na caixa e pouco depois já me largavam frente ao Parque.

Ali à noite, finalmente a descansar, pensava nos percalços todos que tinham sucedido e na forma como sempre, de uma forma ou de outra, tinham sido ultrapassados. Na dificuldade que tinha sido montar a tenda e como tanta gente se tinha prontificado a ajudar. No feijão-frade com atum, que até salsa levou, oferecida pelas meninas acampadas umas tendas mais abaixo, as mesmas que, um pouco mais tarde, me emprestaram o detergente quando nos cruzámos a lavar a loiça. Tinha sido um dia grande, mas também um grande dia.

De barriga para baixo, iluminado apenas pela luz das velas, abri o bloco de apontamentos que tinha trazido na intenção de registar a viagem e em letras bem desenhadas, iniciei triunfalmente:
“L'aventure commence”.

((texto publicado na FreeSurfMagazine))

4 comentários:

Ana "inthehouse" disse...

Até que enfim!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Nico disse...

Excelente....

Outra coisa nao seria de esperar.

Abraço

Maria disse...

São esses pequenos momentos perfeitos que fazem com que certos sacrifícios valham a pena.
Gostei imenso dos vossos textos.
Bom fim de semana

Pedro Ferro disse...

Ana, como dizia e muito bem um colega nosso: "A dor tarda mas não falha", ;)

Nico, obrigado pá, mas espero sinceramente que não mantenhas as expectativas muito altas...

É verdade Maria, há pequenos fragmentos na nossa vida que nos pagam todos os esforços e até nos apagam da memória os maus momentos. Obrigado pelo comentário!