terça-feira, 3 de novembro de 2009

Ponto de Luz

Sara Tavares, Ponto de Luz



'Quer ajuda?', perguntei. O olhar doce, emoldurado por rios de rugas que lhe corriam pelo rosto, antecipou o sorriso com que me recebeu a oferta. A rua não é particularmente movimentada mas, aproveitando a oportunidade para a boa acção do dia, ao vê-la ali, dobrada sobre a bengala como quem carrega o peso invisível de todos os anos que tinha, prontifiquei-me a acompanhá-la. Não, não era preciso, mas aceitou na mesma. Com passos lentos mas certos, seguimos juntos o seu caminho. Depois, segui o meu.

...


Julgo lembrar-me de quase todas as ondas que fiz. Falo daquelas boas, com tudo no sítio, princípio, meio e fim. Infelizmente, a base para esta memória de traços aparentemente elefantinos é uma má condição física. Sempre que volto ao mar depois de longas ausências a história é a mesma: os poucos degraus evolutivos que subi a custo foram descidos deslizando no corrimão. Sem braços à altura da vontade, a opção pela qualidade em detrimento da quantidade é uma escolha óbvia. Vai-me restando a complacência do tempo, lapidando-me as memórias, com que vou verticalizando drops e prolongando hang fives.

Já dos elogios que me fizeram ao surf lembro-me de todos. Todos os três... Depois de os ter recebido comecei a olhar de uma forma diferente para essa Fénix que é o meu nível de surf. Queria estar à altura dos tais elogios, poucos mas bons, e recomeçar, no mínimo, no ponto onde tinha ficado da última vez. Mas, principalmente se estava com gente conhecida nesse renascer das cinzas, a já de si pequena janela de oportunidade de uma grande onda reduzia-se ainda mais por... vergonha. Como se houvesse maior embaraço do que o de entrar na água e não nos divertirmos... Como se houvesse outra razão para ‘cair na água’ além da de nela cair... Por isso, mesmo que as minhas expectativas nunca tivessem estado muito além desse ponto, do surf pelo surf, voltei a pô-las no nível certo.

...


Lembrei-me daquela história porque um dia destes, na espera por uma última onda boa que valesse toda a surfada, dei por mim a pedi-la, sem rodeios, só para mim. Uma boa, com tudo no sítio certo, princípio, meio e fim. Uma onda que se desviasse de toda a gente, que trouxesse o meu nome escrito e passasse por mim dizendo ‘quer ajuda?’.

Talvez lendo este texto se questionem, justamente, se eu não teria vergonha. Não, acho que não, mesmo que tivesse sido preciso. Seguiríamos juntos o seu caminho. Depois seguiria o meu. E mesmo que essa onda viesse a contar a história como eu faço agora, quando o mar enrola na areia, ninguém sabe o que ele diz...


((tipografado na FreeSurfMagazine nº15, Setembro 2009))

2 comentários:

Rudas disse...

Muito, mas muito bom mesmo... ainda bem que quem anda inspirado és tu e que quem anda a surfar todos os dias sou eu... ;-)

Jorge Pinto disse...

Muchas gracias, mestre rudas. Um católico mais fervoroso era capaz de dizer que é a prova da magnanimidade d'Ele, que vai dividindo o bem pelos aldeões. Eu, como ando pouco católico, neste caso rejo-me antes por um exerto de um poema do Pessoa para justificar o elogio mesmo com a actual baixa produtividade marinha:

[...]Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...[...]

Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos.

Troca "aldeia" por "imaginação" e parece-me bem enquadrado no porquê de, mesmo não andando tanto como tu no meio desses montes, tanto ter para contar dos seus rebanhos. E olha que dos trinta e tal poemas que compõeem esta obra, este é justamente o número set

Abraço