Ilustração de Vera Costa
Mesmo ali, em plena luz do dia e à vista da falésia onde se reflectem as minhas ondas favoritas... Mesmo assim, onde o caminho é um só – direitas, só direitas, mais ou menos compridas consoante a perfeição com que os elementos se conjugam – e o crowd, espalhado ao longo da onda, vai dando ares de guarda de honra à passadeira azul que percorro... perco-me facilmente. Mesmo.
Falo do tempo, que deixa de ser um só e se divide no que sinto e no realmente decorrido. E torna-se já num atraso previsto este recorrente imprevisto, qual vigésimo nono dia de Fevereiro em ano bissexto, também ele um acerto do desfasamento do tempo real com o sentido, mas perfeitamente indefinido, em que me vou encontrando perdido.
Diz a canção 'o tempo passa depressa enquanto nos divertimos'...
Certo, certo, mas não é o caso. Ou melhor, muitas vezes será esse o caso, mas não é sempre. E se não é sempre então tem de haver outra explicação. Porque eu perco-me no mar mesmo em terra firme... e nem sempre divertindo-me. E agora que procuro a explicação vejo que vem de trás, lá bem de trás, desde aquelas imagens recortadas de revistas com que forrava cadernos ou esboços desenhados nas margens de folhas. Eram apenas os primeiros indícios, esboçando e forrando não um gosto ou um estilo mas antes pensamentos.
Pensamentos... talvez sejam eles a razão. Sim, talvez eles, deslizando sobre aquelas e outras imagens como eu deslizo ao longo do crowd da minha praia favorita, expliquem o porquê dessa diferença, esse atraso. Um atraso, cujos instantes posso descrever com notável clareza, perfeitamente consciente, mas que não sinto. Ou, pelo menos, não pressinto até ao momento em que me deparo com o tempo real e percebo que, como agora, mais uma vez, me perdi sabendo perfeitamente onde estou, onde estive, ondeando...
((paginado na FreeSurfMagazine nº17, Novembro 2009))
2 comentários:
Tem barbas.... lol
Mas são bonitas, as barbas!
Obrigado, Peter. Embora meio abixanado, um elogio capilar não deixa de ser um elogio (posso ainda adiantar que no seu tratamento, vou alternando a ocasional lavagem com champô/amaciador e o aparar à catanada, estilo Crocodilo Dundee...).
Já a demora entre a publicação original e a entrada nos bits do blog, é explicável com um acordo tácito entre mim e eu próprio. Uma vez que tento sentar-me ao teclado pelo menos uma vez por mês e de vez em quando, cada vez com menos frequência, sai um em exclusivo para a pandilha que só nos lê na internet, neste momento tenho dois meses de textos para a FreeSurf em arquivo.
Mas nem tudo me parece mau já que, por algum motivo que não sei explicar muito bem, mesmo mantendo exactamente as mesmas contrapartidas que temos do Blogger, ver os nossos textos impressos em papel fez-me aumentar o cuidado com os mesmos. Não tenho a certeza se estão mais bonitos, mas demoram mais tempo a ficar prontos...
Aliás, até sei o motivo, já que o Carlos Ruiz Záfon o descreveu muito bem, no início do seu El Juego del Ángel: "Un escritor nunca olvida la primera vez que acepta unas monedas o un elogio a cambio de una historia. Nunca olvida la primera vez que siente el dulce veneno de la vanidad en la sangre y cree que, si consigue que nadie descubra su falta de talento, el sueño de la literatura será capaz de poner techo sobre su cabeza, un plato caliente al final del día y lo que más anhela: su nombre impreso en un miserable pedazo de papel que seguramente vivirá más que él. Un escritor está condenado a recordar ese momento, porque para entonces ya está perdido y su alma tiene precio."
Tendo tu sangue galego, não precisas por certo de tradução. Mas desde já esclareço que tendo tanto de escritor quanto de surfista, se arranjasse maneira da barba me crescer no meio de umas belas marolas e de uma caneta de tinta permanente, punha o champô e amaciador definitivamente de lado… ;-)
Abraço e boas ondas.
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