terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Crónica dos Bons Malandros


Pedro, já vi que a tua aplicação da velha máxima do Alferes Santos não serve a todas as tarefas delicadas, como por exemplo à descrição de idas memórias.

Na altura aceitei a superioridade da tua argumentação dado que, além de te saber rapaz de alguns recursos surfísticos, sacar dos ensinamentos do Alferes Santos é golpe para deitar por terra três programas inteiros das Escolhas de Marcelo, dois discursos do ex-presidente Jorge Sampaio e meia opinião do Rui Santos! Mas a aplicação em vão das suas dogmáticas saídas tem consequências tão nefastas como querer emendar o excesso de sal no arroz, deitando-lhe água a meio da fervura… Nesse sentido, de conter os danos, repor a verdade dos factos e mais um ou outro ponto fora da ordem do dia que me ocorra entretanto, venho relembrar que o dono desta 5’0” noseless de quem o nosso co-blogger Magalhães fala, é outra das particularmente caricatas personagens com que nos cruzámos no Magreb e não o “todo sorrisos”.

Trago para isso à baila o Furriel Fonseca, instrutor de recruta do Alferes Santos, que permaneceu na história dos Caçadores Especiais bastante aquém dos seus reais feitos, como por exemplo o ensinamento de tudo o que o filósofo e artesão Alferes sabia. Reza a história que o furriel meliciano, versado na Arte da Guerra de Sun Tzu quanto no Dicionário Vernacular das Caxinas, se viu prisioneiro num povoado nas imediações de Bogotá. Desarmado das suas Lucilias (uma AK47, mais limpa e lustrada que o serviço de Natal Vista Alegre para 48 pessoas da Rainha de Inglaterra, uma pistola Beretta, com igual trato mas com o acréscimo sentimental de ter sido herança familiar da parte do tetra-avô paterno, assim baptizadas depois de ter assistido à mestria com que BB King tocava a sua, numa ida edição do Festival de Jazz de Minde), salvou-se pelo canivete suíço, comprado aos americanos na base das Lajes (e que de suíço pouco tinha, excepto a cor de chocolate de leite, fruto da ferrugem que o cobriu por inteiro mesmo antes de chegar à fronteira entre a Colômbia e a Venezuela).

Habituado a enfrentar a morte olhos-no-escuro-por-baixo-do-capuz, mas incapaz de suportar a própria consciência por deitar lixo que não num Ecoponto, guardou o canivete atrás da orelha, mal sabendo que tal gesto lhe havia de salvar a vida. Ao fim de pouco mais de duas horas em solo colombiano, quando se julgava perfeitamente integrado no seu disfarce de traficante, não chegou a ver o fundo do copo de shot de tequila na tasca “El Gringo”. Acordou no meio da selva, nos braços de uma mulher que lhe humedecia os lábios com um pano e a quem ainda teve tempo de perguntar o nome. “Ing-quê?” foram as suas últimas palavras antes de mais uma soneca induzida à socapa...

Mas voltando ao que interessa, os seus captores, conhecedores de várias técnicas de tortura medievais mas incapazes de discernir as diferenças entre uma verruga e aquele pedaço de ferrujem atrás da orelha, permitiram-lhe manter consigo a chave da sua soltura. Quando as tropas americanas o encontraram ainda inanimado entre nos destroços bombardeados do seu cárcere, foi o dito canivete que o identificou como português ao invés de nado e criado na Colômbia, como aparentava. É que, sabiam os G.I. Joes, estes canivetes eram usados como as tatuagens pelos Yakuza, mas entre um pequeno grupo de pescadores da terceira, irmãos de mar e de sangue. Sim, o canivete veio das Lajes, mas pelas mão de um desses pescadores dissidente, que em último recurso o jogou como aposta numa mão perdedora de poker… Como tantas outras vezes, o furriel ganhou.

Ora, se ainda aí estás e como eu já perdeste o sentido desta prosa, concluo então a coisa respondendo à tua “dedicação às tarefas delicadas como complemento a melhor afinação visual” com o sábio dizer com que o Furriel Fonseca culmina todo e qualquer raciocínio: “diz-me como é que aplicas o wax, dir-te-ei se completas as rasgadas”. Sei que para bom entendedor seis mil caracteres são mais do que suficientes, mas como para o Blogger é mais do que os quatro mil e noventa seis permitidos nas caixas de comentários, esclareço que é como quem diz: se essa confusão de identidades é táctica para invocares a necessidade de, quanto antes, juntares a mesma pandilha e renovares os objectivos com que as ditas memórias foram criadas, rechaçando assim este possível laivo de Alzheimer como a padeira de aljusbarrota aviou os nuestros hermanos, desde já te informo que tenho na manga dois ou três destinos de igual monta.

E desta vez, por causa das coisas, terras de picos triangulares!


Fotografia de Chris Burkhard, 2066


1 comentário:

Pedro Ferro disse...

Vim rever hoje esta tua maravilhosa prosa. O tempo enriqueceu este e outros dos textos que aqui fomos colecionando com uma bela patine!