segunda-feira, 13 de julho de 2009
Elogio da loucura
Era bizarro, mas nós já não estranhávamos. Já nos tínhamos habituado a ver aquele homenzinho, de quando em vez, a passar por nós pedalando todo nu na sua ‘pasteleira’. Ao que parece bastava exceder-se um pouco mais na bebida que lá se ia a roupa, e depois, como que a consagrar a desinibição alcançada, pegava na bicicleta e dava a volta da praxe pelo meio da cidade.
Estes episódios, apesar de tudo, não lhe eram levados a mal. Desde moço que a gente da terra o conhecia – a ele, ao seu desequilíbrio e àquele seu hábito particular.
Nessas alturas, à sua passagem, os homens já só o apontavam rindo com pena
– Olhem, lá vai o Asdrúbal!
– Coitado do Asdrúbal!
sentenciando-lhe mais a bebida do que a nudez
– Dá cabo dele, o vinho!
Já as mulheres olhavam de soslaio para o que jurariam mais tarde nem sequer ter reparado, benzendo-se e corando com tão mal empregue pedaço de/o homem
– Coitadinho. Tivesse ele juízo!
fazendo contas de cabeça…
E nós, miúdos, talvez mais astutos, apenas reparávamos como ele seguia tão direitinho para tão proclamada bebedeira. Vai na volta e esses seus estados de embriaguez nem eram assim tão profundos; muito possivelmente eram-lhe apenas uma desculpa para se revelar tal como era, seguindo fora de eixos mesmo que assim tão direitinho, só que no caso do Asdrúbal essa questão de se despir à sua verdadeira essência tinha
(convenhamos)
um carácter demasiado literal.
O Viriato era outra personagem sui generis lá da terra, a meu ver bem mais inofensivo – que só lhe dava para pegar na guitarra e cantar o fado – mas por fazê-lo constantemente, a qualquer hora e por tudo e por nada também ia mantendo, tal como o Asdrúbal, uma relação próxima com a guarda, que não raras vezes era chamada para lhe pôr fim à cantoria
– Hão-de cá vir que tenho o Viriato à porta! ‘Tá’ bem que o homem até tem boa voz, mas já são duas da manhã, ele não se cala e amanhã trabalho!
Lembrei-me destes dois a propósito de uma outra figura: uma pobre rapariga, de rico sorriso, que de certa forma, no seu desequilíbrio, partilha deles algumas características.
Costumava vê-la na Costa quando ia surfar, aparecia a rir
(sempre a rir)
a baloiçar na mão um daqueles baldes pretos, vulgares, como os que se usam nas obras para acarretar cimento, com o fato de neoprene lá dentro.
Tal como ao Asdrúbal e ao Viriato via-a despida e musical a passar; despida, mas não nua – despojada, apenas, do supérfluo - nada de autocolantes, nem de marcas, nem cenário ou pose descontraída e falsa de quem vê no surf uma moda - muito pelo contrário, que depois do fato enfiado no corpo, fazia o mesmo a um saco de plástico colorido nos cabelos, dando-lhe uns pequenos nós ao redor da cabeça para que não se fosse com as ondas.
De certa forma ela representava da forma mais pura a alegria tão básica de quem vai surfar. Sorrindo
(sempre sorrindo)
via-a entregar todo o seu empenho para se levantar nas ondas mais pequenas do inside; e quando conseguia, nada de pose descontraída, antes se elevava toda hirta, abrindo bem os braços para se manter equilibrada e assim, de saco de plástico azul ou rosa na cabeça, seguia como o Asdrúbal – fora de eixos mesmo que assim tão direitinha.
Levando a máxima de ‘só-mais-uma-e-já-saio’ literalmente à exaustão, só o cansaço a retirava do mar. A fazer lembrar, mais uma vez, o Viriato, que mesmo quando o ‘Sôr’ Guarda aparecia a resmungar imponente por detrás do bigode
– Queira acompanhar-me por favor.
ele ainda lhe tentava dar a volta e cantar mais uma
– Em dó ou em sol?
((em papel na FreeSurfMagazine nº12, Junho 2009))
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