sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Coices que a vida dá!



Foi num re-entry um pouco mais ousado que a quebrei ao meio. A onda nem era muito grande, mas a pressão que os meus pés fizeram sobre a prancha quando cheguei à sua base foi a suficiente para a partir em dois.

Na altura nem fiquei admirado nem muito chateado pelo que aconteceu. A prancha já há muito que se andava a queixar, velhinha, velhinha, a pedir a reforma pelo seu tempo de serviço. Eu ia-lhe fazendo ouvidos moucos, mas a pensar que sim, que estava na altura de arranjar nova companhia… só me faltava era o t€mpo, e sem t€mpo lá a ia levando de conserto em conserto aplicando todo a minha habilidade e mestria na aplicação do tape.

Tanto ding e tanto remendo só me fazia pensar que o que tinha ali era, basicamente, um “burro dos ciganos”… Não desfazendo - nem nos burros, nem nos ciganos, claro está!

Mas era do que me lembrava, da anedota do burro que trabalhava e não comia e que acabou por morrer para desconsolo do seu cigano

– Era tão, tão bom, conseguia trabalhar sem comer e agora que já estava habituado a não comer é que foi morrer.

Assim era a minha prancha... entretanto partida

– Ai o burro!

terça-feira, 22 de setembro de 2009


Arte de Jim Denevan


A areia acolhe os melhores versos!

Inteiros,

só no momento se podem ler...

... depois leva-os o vento e o mar.


Como na vida: a magia é um sulco no presente.

Aos Fins de Tarde!


..
Momentos captados com infinita paciência por Ana Nunes.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Bicho-do-Mato Órfão de Mar


Ilustração Vera Costa

Pelo menos uns quatro ou cinco quilómetros a mais devem ser, ainda assim permaneces em silêncio ao veres que tomo este caminho. Finjo parecer casual, assumo a postura séria de quem-não-quer-a-coisa, mas, do canto do olho, disfarçando, avalio-te a mudez. Suspeito que um sorriso… que talvez um leve sorriso a esboçar compreensão.

Por aqui é pela estrada ladeada de plátanos, aquela em que as copas se abraçam apaixonadas sobre todo o seu comprimento; Uma paixão que percebo e que tu sabes que eu venho procurar.

É de noite, faz algum frio, mas ainda assim escancaro as janelas do carro enquanto rolamos na inércia que nos trouxe até cá. Tentas comigo ignorar esta frescura nocturna, preocupado que estou em deixar entrar o canto dos grilos, enquanto, serena, aninhas o leve sorriso, agora de compreensão flagrante, no meu ombro direito.

Fragmentos de Lua tentam esgueirar-se através da cortina densa das árvores estilhaçando-se pela estrada e eu, tal copa de plátano, abarco-te com o meu braço livre completando o abraço apaixonado… e seguimos cheirando campo!

Sabes que quando estou assim sem mar, para mais de tanto tempo, me converto em bicho-do-mato; que estou, não estando; que sou como um bicho órfão de mar a chorar por dentro. Sei que sofres comigo porque me amas, mas nestas ocasiões, pouco mais te resta do que me abrires o sorriso e seres companhia nesta estrada. Lado a lado, acompanhados pelo choro dos grilos, ajudas-me a encontrar alimento alternativo para a alma - respigando aqui e ali os estilhaços de Lua. E eu, mesmo a guiar, arrisco por momentos fechar os olhos, na vã tentativa de acreditar que, afinal, aquele túnel de plátanos não é mais do que um tubo perfeito e infinito com que o mar nos abraça!

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Apenas uma questão...

...'o tamanho interessa?'

Por certo de modo instintivo e de forma a dar algum algum humor ao lineup, confesso-vos aqui e agora ter-me aflorado tal interrogação à parte de trás das pálpebras. Fruto qui-ças de alguma tarde de regadio - de relatos de feitos surfísticos antigos - bem passada em solo arenoso e sob brisa marinha bem temperada ou da sã vida que tem pautado o decorrer destas últimas semanas futuramente suspiradas mas de momento envoltas em mornas recordações de infindáveis horas de surf.

De um momento para o outro voltei a ter tempo para mim e dei espaço a alguns momentos de instrospecção. Num deles surgiu o tal dilema. Eu que até sou dos primeiros a prescindir da toalha antes de me envolver em neopreno! O assumido prelactor do... 'bora? já fui!' O surfista que jamais discriminou outro surfista por razões fúteis tais como: sexo, raça, sexo, marca de prancha, sexo ou cor do fato... e agora com dúvidas e condicionalismos de grandeza!

Talvez se num contexto futebolístico vivêssemos todos nós o internacionalmente famigerado 'síndrome do balneário'... mas nós??!?! Os gajos-eco-pró-natura-super-in ...? Os triologistas do Sal, Sol e Dunas? Vamos lá todos apreciar o offshore que o onshore cheira a cócó de gaivota doida? Como raio foi isto acontecer...?

Mas foi... algures entre o excelente livro de porta do carro e a entrada da tarde ou da manhã - confesso que as quase 4 décadas de navegação por mares lusos já não me libertam a acuidade necessária ao acerto temporal dos factos - despertei para a causa, inalei profundamente e arregalando os olhos, uma vez mais conjuguei as três palavras juntas e de forma avassaladora a minha mente resplandesceu com a clarividência de uma solução!

'O tamanho interessa?' - questionei-me e arrebatei eu uma vez mais antes de me decidir em partilhar convosco o sanar definitivo da dúvida.

Estacionei o carro numa falésia próxima, despi de forma segura a bermuda australiana e fiz-me às ditas, durante mais de uma hora, apenas tendo como testemunha - em terra firme ombreando feliz com lapas e mexilhões - a minha companheira de percurso, armada de canon sem lente escalativa que permitisse extrapolar o prazer de surfar sem viva alma nas redondezas...

De facto interessa mas por muito grande que a imaginassem, se nesta semana estiveram a trabalhar, apesar da evidente pequenez o prazer (gigante) foi todo meu...

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Radio Surf


Ilustração por Vera Costa


Era ainda ao ritmo da última música que havia tocado na curta viagem pós-surf que, equilibrando o 9´6 num dos braços e o tupperware com o neoprene molhado no outro, rodava a chave à fechadura da porta do prédio de quatro andares. Era uma porta velha de aço que mais parecia dar entrada a um pequeno armazém abandonado do que efectivamente ao velho prédio do Bairro de Nossa Senhora de Fátima onde habitávamos os quatro: eu a minha irmã e duas amigas.

Os quatro lanços de escadas que se seguiam, de tão estreitos, obrigavam a uma performance de contorcionismo na qual a noserider de listas azuis entrava como a assistente inexperiente de medidas generosas embatendo em tudo o que existia no palco à sua volta. A memória do último caminhar para o bico da prancha combinado com a linha de baixo do dub da viagem marcavam o compasso e chegava à porta do nosso andar já com o porta-chaves nos dentes com a sensação de quem, já na areia, acaba com sucesso uma onda na qual todas as secções ameaçaram fechar.
As meninas em casa desdenhavam do pranchão fazendo comparações (como só as mulheres sabem fazer) entre esta e a funboard verde alface que havia ocupado o seu lugar no meu quarto junto ao armário, e o seu respectivo espaço no meu coração.

“Era mais bonita” – diziam.
“Cagavas menos esta porra toda.” - creio que pensassem.

A casa, foi a mais velha onde vivi e a que certamente me trará melhores recordações. Nesse tempo havia música na minha vida. E isto não é uma metáfora. Havia mesmo.
O caminho da faculdade, que era na maioria das vezes o caminho da surfada, era preenchido com melodias vindas da Jamaica que apelavam à paz entre os homens e à cannabis entre as mortalhas. Cheguei a sentir que o meu renault clio vermelho-comido-do-sol às vezes tentava descolar, e que era mais fruto da leveza do condutor do que da vertiginosa velocidade de sessenta quilómetros horários a que era normalmente submetido. Havia música de manhã no meu quarto, caiado de branco com uns cortinados do-it-myself, quando estes falhavam a sua missão de travar os primeiros raios de luz e à noite se alguma jovem mulher cometia a decisão acertada de nos meus lençóis se deitar.

A música tem vindo a desaparecer da minha vida e creio que do meu surf. O carro é o mesmo, apenas a pintura vai perdendo as batalhas diárias com o Astro-Rei, mas, esventraram-no do seu cantante há quase dois anos num dia em que dormiu no Bairro Alto. Há-de ter sido trocado por dois caldos que silenciaram a agonia de alguém. Eu, por casmurrice, nunca mais o substitui e só lá está o buraco.

Estas palavras são de saudade. O meu bottom-turn está menos fora de tempo mas perdeu a melodia improvisada de uma bossa de aprendiz. Agora no elevador vou estático e troco muitas vezes a memória da última onda de fim de tarde pela preocupação com o primeiro telefonema da manhã seguinte. Mas quando olho no espelho esforço-me para me convencer que o que vejo são costas capazes de se contorcer caso surja a ocasião.

É que a vida que se leva, como a cidade, tem outro encanto na hora da despedida. E por muito que em certas alturas a queiramos com a graça do improviso, e que noutras busquemos a genialidade confortável da composição interpretada, sei de certo que o presente encerra muitas respostas na razão de um: – “Tem dias.”
Surfas bem? Estás contente? Gostas disto? És feliz?

Texto publicado na Free Surf Magazine

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Abre los Ojos

Fotografia de Priscila Tessarini, Caleidoscópio


Gostava de ter chegado um dia, inocente mas já consciente, e deitar-lhe um primeiro vislumbre. Não importava que tivesse visto imagens ou lido descrições, tenho a certeza que iria olhar, pasmado, face à nudez que um corpo desejado veste pela primeira vez. Em vez disso, cresci com ele ali. Desde sempre, ao virar da esquina, dado como adquirido. Com a mesma facilidade com quer ia pedir rebuçados à Tasca do Tonecas, pegava na bicicleta e ia até à arriba, espreitá-lo.

A certa altura, sendo eu dado a maleitas crónicas nos olhos, disseram-me que haviam duas formas de descansar a vista: a perfeita escuridão e o horizonte marinho. Nunca foi nada de grave mas, com a elevada resistência à dor que o cromossoma Y confere, preparei-me para o pior e passei a ir à arriba mais vezes. Não importava se cinco minutos ou meia hora, de relance ou uma tarde inteira, embrenhava-me nele... Fui aprendendo a, revendo, ver de novo e a não ficar indiferente àquilo que é "normal", que se repetete dia após dia e tendemos a menorizar. Quando vinha diariamente da margem sul do Tejo para Lisboa, raramente deixava de contemplar o rio, o casario e o reflexo de luz muito particular que a cidade tem. Via muita gente com o olhar pousado no mesmo brilho mas, o da maior parte, estava perdido noutros pensamentos, inexpressivo. O surf, com as suas repetições, esperas e envolventes, apenas veio potenciar esta visão das coisas.

Hoje, já sem tempo para preencher tão livremente, uso mais vezes o breu para descansar. De tantas vezes a ter espreitado, consigo desenhar ao fundo aquela linha que, mesmo ténue como nos dias cinzentos, tanta cor dava aos meus dias. Quando o desejo aperta, mais perto da arriba, desenho também umas ondas, quebrando perfeitas, vestindo-se só para mim...


"Quando eu me encontrava preso
Na cela de uma cadeia
Foi que eu vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém lá não estavas nua
E sim coberta de nuvens[...]"
Caetano Veloso, Terra


((Publicado na FreeSurfMagazine nº12, Junho 2009))