Fotografia de Priscila Tessarini, Caleidoscópio
Gostava de ter chegado um dia, inocente mas já consciente, e deitar-lhe um primeiro vislumbre. Não importava que tivesse visto imagens ou lido descrições, tenho a certeza que iria olhar, pasmado, face à nudez que um corpo desejado veste pela primeira vez. Em vez disso, cresci com ele ali. Desde sempre, ao virar da esquina, dado como adquirido. Com a mesma facilidade com quer ia pedir rebuçados à Tasca do Tonecas, pegava na bicicleta e ia até à arriba, espreitá-lo.
A certa altura, sendo eu dado a maleitas crónicas nos olhos, disseram-me que haviam duas formas de descansar a vista: a perfeita escuridão e o horizonte marinho. Nunca foi nada de grave mas, com a elevada resistência à dor que o cromossoma Y confere, preparei-me para o pior e passei a ir à arriba mais vezes. Não importava se cinco minutos ou meia hora, de relance ou uma tarde inteira, embrenhava-me nele... Fui aprendendo a, revendo, ver de novo e a não ficar indiferente àquilo que é "normal", que se repetete dia após dia e tendemos a menorizar. Quando vinha diariamente da margem sul do Tejo para Lisboa, raramente deixava de contemplar o rio, o casario e o reflexo de luz muito particular que a cidade tem. Via muita gente com o olhar pousado no mesmo brilho mas, o da maior parte, estava perdido noutros pensamentos, inexpressivo. O surf, com as suas repetições, esperas e envolventes, apenas veio potenciar esta visão das coisas.
Hoje, já sem tempo para preencher tão livremente, uso mais vezes o breu para descansar. De tantas vezes a ter espreitado, consigo desenhar ao fundo aquela linha que, mesmo ténue como nos dias cinzentos, tanta cor dava aos meus dias. Quando o desejo aperta, mais perto da arriba, desenho também umas ondas, quebrando perfeitas, vestindo-se só para mim...
- "Quando eu me encontrava preso
Na cela de uma cadeia
Foi que eu vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém lá não estavas nua
E sim coberta de nuvens[...]"
Caetano Veloso, Terra
((Publicado na FreeSurfMagazine nº12, Junho 2009))
5 comentários:
Mais um excelente post!
Vou começar a acompanhar este blog com mais regularidade. Que é feito do Rudas?
Excelente mesmo...!
Donald, não te preocupes q assim q ou as ondas cessem ou os braços rebentem eu invisto algum tempo em caracteres... ;-)
Pois, infelizmente tambem é isso que me tem levado a debitar a verborreia que lá se vê. Mas ao menos é da maneira que um gajo sempre se aproxima do mar!
abraço pessoal
Um bom texto;
Gosto da sinceridade com que escreves.
Vou continuar a seguir a tua escrita.
Donald, uma vez que the man him self já veio dar notícias e até um ar da sua graça...
Rudas, amanhã numa daquelas boas, mesmo boas, em que eu tenha prioridade mas tu estejas logo ali ao pé, deixo-a passar para ti...
André, esperando poder continuar a merecer a tua leitura...
Grazie a tutti!
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