Ilustração por Vera Costa
Era ainda ao ritmo da última música que havia tocado na curta viagem pós-surf que, equilibrando o 9´6 num dos braços e o tupperware com o neoprene molhado no outro, rodava a chave à fechadura da porta do prédio de quatro andares. Era uma porta velha de aço que mais parecia dar entrada a um pequeno armazém abandonado do que efectivamente ao velho prédio do Bairro de Nossa Senhora de Fátima onde habitávamos os quatro: eu a minha irmã e duas amigas.
Os quatro lanços de escadas que se seguiam, de tão estreitos, obrigavam a uma performance de contorcionismo na qual a noserider de listas azuis entrava como a assistente inexperiente de medidas generosas embatendo em tudo o que existia no palco à sua volta. A memória do último caminhar para o bico da prancha combinado com a linha de baixo do dub da viagem marcavam o compasso e chegava à porta do nosso andar já com o porta-chaves nos dentes com a sensação de quem, já na areia, acaba com sucesso uma onda na qual todas as secções ameaçaram fechar.
As meninas em casa desdenhavam do pranchão fazendo comparações (como só as mulheres sabem fazer) entre esta e a funboard verde alface que havia ocupado o seu lugar no meu quarto junto ao armário, e o seu respectivo espaço no meu coração.
“Era mais bonita” – diziam.
“Cagavas menos esta porra toda.” - creio que pensassem.
A casa, foi a mais velha onde vivi e a que certamente me trará melhores recordações. Nesse tempo havia música na minha vida. E isto não é uma metáfora. Havia mesmo.
O caminho da faculdade, que era na maioria das vezes o caminho da surfada, era preenchido com melodias vindas da Jamaica que apelavam à paz entre os homens e à cannabis entre as mortalhas. Cheguei a sentir que o meu renault clio vermelho-comido-do-sol às vezes tentava descolar, e que era mais fruto da leveza do condutor do que da vertiginosa velocidade de sessenta quilómetros horários a que era normalmente submetido. Havia música de manhã no meu quarto, caiado de branco com uns cortinados do-it-myself, quando estes falhavam a sua missão de travar os primeiros raios de luz e à noite se alguma jovem mulher cometia a decisão acertada de nos meus lençóis se deitar.
A música tem vindo a desaparecer da minha vida e creio que do meu surf. O carro é o mesmo, apenas a pintura vai perdendo as batalhas diárias com o Astro-Rei, mas, esventraram-no do seu cantante há quase dois anos num dia em que dormiu no Bairro Alto. Há-de ter sido trocado por dois caldos que silenciaram a agonia de alguém. Eu, por casmurrice, nunca mais o substitui e só lá está o buraco.
Estas palavras são de saudade. O meu bottom-turn está menos fora de tempo mas perdeu a melodia improvisada de uma bossa de aprendiz. Agora no elevador vou estático e troco muitas vezes a memória da última onda de fim de tarde pela preocupação com o primeiro telefonema da manhã seguinte. Mas quando olho no espelho esforço-me para me convencer que o que vejo são costas capazes de se contorcer caso surja a ocasião.
É que a vida que se leva, como a cidade, tem outro encanto na hora da despedida. E por muito que em certas alturas a queiramos com a graça do improviso, e que noutras busquemos a genialidade confortável da composição interpretada, sei de certo que o presente encerra muitas respostas na razão de um: – “Tem dias.”
Surfas bem? Estás contente? Gostas disto? És feliz?
Texto publicado na Free Surf Magazine
1 comentário:
Nada que uma ida a praça de espanha na busca de um exemplar semelhante ao teu ultimo kenwood, traga um pouco mais dessa maravilhosa musica
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