quarta-feira, 7 de abril de 2010

Pessoal e transmissível


Já pensei que o surf fosse algo estritamente individual. Que, apesar de todo o tipo de vivências conjuntas e trocas de experiências que proporciona, se pudesse reduzir apenas a um simples binómio entre Homem e Natureza. Um nós que é um eu, um eu e a minha onda. E aí, onde os outros têm a importância de um qualquer estranho com que nos cruzamos numa rua movimentada, assentavam as bases para este feitiço em que se torna a nossa relação com o mar.

Já pensei isso. E que esse feitiço era recíproco, num registo quase bipolar de quem quer o bem e quer o mal e afinal não quer nada... pois a dimensão dos elementos que se conjugam numa onda a quebrar nos reduz à mais pura e solitária insignificância, quando ao mesmo tempo que nos eleva à categoria de semi-deuses, por essa conjugação se dar num determinado momento, num determinado local, em nosso benefício.

Já pensei isso, já senti isso. O acto de surfar como uma moderna e válida teoria egocêntrica de um universo particular... O nervosismo, desde o imperceptível ao do limiar do pânico, revelando-se a chave para acelerar-nos de vida num big-bang, repetido ao expoente da loucura, viciante na sua simplicidade de meios face à complexidade do seu fim: uma pedra filosofal de boa onda, de bom feeling... Mesmo que assente num enleado jogo de desafios a que por vezes sucumbimos... mas que tantas mais os superamos. Eu sentia-o assim.

Mas, mesmo sem na altura o saber, o meu surf não acabava em mim. Não o acto em si. Não o meio mas sim o fim.

Quando o surf nos invade outros aspectos da vida, já não é de pranchas nem fatos que falamos, mas sim dessa boa onda, esse bom feeling, que trazemos do mar e que, naturalmente, partilhamos. Mesmo com estranhos e em ruas movimentadas.

Se há coisa que o surf me parece transpirar por todos os poros é que, a dada altura e mesmo que seja mais difícil do que estávamos à espera, temos de largar certos preconceitos, aproveitar a boleia and just go with the flow. Não ser contra, ser completo. E não ‘excepcionalmente’ ou ‘porque é Natal’, mas porque dar pode ser tão bom como receber.

Já pensei que o surf fosse algo
estritamente individual.
Estava errado.
Ainda bem.



Ilustração de Vera Costa








((impresso na FreeSurfMagazine nº18, Dezembro 2009))