Esta single-fin descobrimo-la numa arrecadação do jardim por debaixo de teias de aranha e sujidade.
– Se pudesse oferecia-te esta casa! – Diz-me ela com um certo ar reguila, apontando-lhe o dedo, enquanto passamos de carro.
É uma casa velha, um pouco degradada pelos anos.
Já pelo espelho retrovisor um cubo sólido de dois pisos que inspecciono: vãos regulares e um sótão por debaixo de um telhado simples de quatro águas. Há uma pequena janela que nele se destaca, é simpática, mas simultaneamente sinistra por dar ares de abandono. De alguma forma lhe deve estar a parecer assombrada, porque
– As assombradas são as que mais me palpitam.
– Se ma oferecesses até a relva à entrada lhe aparava! – Sorrio-lhe – Fazia uma horta lá atrás no terreno e passaria o resto do tempo a pintar-te paisagens marítimas. – Sorri-me.
Imagino que lá de cima, a toda a hora, em jeito de inspiração permanente, entre casa adentro a praia de Pantin. Não só o areal, não só as ondas – que por ali entram bonitas, solenes, como que a trautear notas graves em adágio – também todo o verde-galego, toda aquela montanha florida de árvores altas, e todas aquelas ancas e gestos femininos com que as encostas se dobram e trejeiteiam sobre o mar.
Seria fácil manter uma relação amorosa com este local, é fácil imaginar que aqui poderíamos ser felizes. Lembro-me então do Mark – O Mark é o inglês que nos aluga a casa onde estamos hospedados – ontem convidámo-lo para um churrasco, nós comprámos a comida e a bebida e ele, à grande e à inglesa, trouxe-nos mais umas quantas garrafas.
Eu escolhi o vinho pelo nome, “Señorio de Ondas” dizia o rótulo, não se revelou mau e o primeiro copo que lhe entreguei, logo após a sua terceira cerveja, ajudou seriamente ao desenrolar da conversa – até o meu inglês se lhe tornou mais perceptível… acho! Foi então, entre copos, que nos contou a sua história, como chegou aqui marinheiro e como a Galiza se lhe insinuou quando se acercaram a este troço de costa.
Quando vi o Mark pela primeira vez estava ele seriamente esparramado num cadeirão do seu jardim, todo loiro e despenteado, de roupa velha e furada a disfarçar com o maior dos desmazelos a grandiosidade da sua pessoa. Confesso que mesmo com o seu irrepreensível sotaque inglês lhe demorei a adivinhar mais do que um caricato assaltante de lojas de conveniência. Mas, afinal, aquele disfarce em modos relaxados, era apenas o resultado de quem está a chegar ao seu sétimo dia de criação e descansa depois de trabalhar duro na concretização dos seus sonhos.
Contou-nos que em Inglaterra lhe tinha dado para, de raiz, construir um barco-casa:
– Não tinha nenhuns conhecimentos de náutica… e poucos de construção, mas li muito, consultei pessoal entendido e acabei por fazê-lo com três pisos – ri-se – todo o dinheiro que ganhava era ali que o deixava.
De todas as formas, quando a paisagem galega se lhe insinuou, soprando-lhe solene e em jeito de sereia as suas notas graves em adágio, o seu lado de surfista sonhador logo se rendeu. Sem cerimónias, sem quaisquer remorsos, vendeu-o para custear esta velha casa.
– Fui eu que a remodelei sozinho. – Pois está claro!
As últimas gotas da garrafa que invisto para o copo inspiram-me:
– Devias pintá-la de vermelho, Mark, aqui parece ser típico, as molduras das janelas e das portas de branco e as paredes de vermelho-vinho. Com tantos carvalhos aqui à volta parece-me ser um bom local para envelhecer, não tarda muito e é aqui que teremos o verdadeiro e irrepreensível “Señorio de Ondas”.
…
3 comentários:
Nao o deixes fugir...
Faz o barco-casa agarra nos que mais amas e vai... um beijinho
Começei por (alma salgada) continuei no vagueares.Muitos parabens pelos textos! Quando são sentidos e vividos, são mais bonitos de ler. Transmites muita harmonia quando escreves. Boas lembranças que tive ao ler algumas dessas passagens. O mar faz bem a alma.
Obrigado pelos comentários.
É bom saber que atingimos a alma de quem nos lê, é sinal que partilhamos algo, que estamos acompanhados por quem aprecia o gosto salgado do mar.
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