Já lhes estava a tirar as medidas e penteava sôfregamente a prancha quando no meu Paraíso Privado tocou o telefone...
'-Está? Olha...a pequenita está com febre... vais com ela ao médico...?'
'-É pá... já estou de fato vestido...'
'-Pois... é pouca febre mas eu estou em Lisboa e não posso ir à ama...'
'-Vou só dar uma entradinha rápida e vou já lá vê-la...'
Tirei o fato não fosse cair em tentações, caí na água e surfei desalmado - o que vos confesso como sendo bastante díspare de 'desalmadamente'. O mar estava grande e glass, a prancha era pequena e eu não estava ali. Fiz quatro ondas e saí. Vesti-me à pressa e qd subia a escadaria, um velho amigo de infância, ex-dealer e agora já de bem com a vida - se bem que com algumas mazélas dos velhos tempos de loucura - aparece-me pela frente:
'-Então mano???? Onde vais a correr???? Não me vais deixar aqui sózinho com este swell não???'
'-Fosgasse pá, tenho que ir ali a casa ver como está a caçula e provavelmente sigo para o Hospital para as análises da treta...'
'-É meu, g'anda cena!!! Então vou buscar a tábua a casa e ficar aqui à espera que apareça alguém
que sózinho não vou lá...'
Praguejei o caminho todo... chamei nomes a todos os cá de baixo e mais ainda aos lá de cima. Não faço mais nada que isto e agora que estão estas ondas de sonho fico em casa?!?!? Quando chego ao infantário, a pequena ria eufórica - talvez sob o efeito do recém ingerido brufen - ligo à médica, directora da pediatria de Torres Vedras.
'-Sim, sim... tou a ver quem é... são os loirinhos da Boavista né? Esqueça lá isso... o que não faltam por estes dias são viróses!!! É Outubro e estão 32ºC... não está à espera de milagres não? Se quinta feira ainda estiver febril apareça mas vai ver que não é nada... hoje já cá vieram mais de 100 e não foi com 37 e picos...'
Caguei bem no gasóleo e nos buracos da estrada de terra batida. Acelerei que nem um louco e estacionei 3min depois, acabado de vencer o Dakar. O Bruno estava a descer as escadas e a fumar uma enquanto via a ondulação a desfazer-se contra a falésia. Mandei-lhe uma assobiadela eufórico!!!!
'-Puto!!! Vamos lá que a míuda já está melhor que nós dois juntos...!!!!'
'-Fosgasse mano, nem os bafos me estavam a convencer de entrar sózinho... vai ser do best'
Entrámos a par e levámos - a par -porrada à séria, uma sucessão de pesos médios, curta mas intensa. As séries entravam a passar a barreira dos 2 metros. A água continuava quente, límpida e o glass era apenas momentaneamente desajeitado por espumas de branco intenso.
Sentámo-nos no pico e rimo-nos. Fónix!!!! Isto tudo só para nós dois?!??!
As direitas estavam ainda melhor que as esquerdas e eu precisava de meter a cabeça em ordem.
Remei com a acuidade física de quem passa horas a premir o tórax contra o deck. A onda não passava de um cano. Resolvi não fazer o óbvio e precipitei-me bem detrás do pico. A adrenalina inundou-me o corpo e o típico calafrio de quem acaba de sentir congelar as veias fez-me raciocinar. Toda a minha atenção recaiu na única trajectória que poderia transformar aquele momento de incerteza e possível dor, num estado de paz e plenitude.
Lembro-me de passar em menos que nada os pés para os cm2 que a prancha me pedia e da minha mão direita pentear a água acrescentando assim mais um leme à nau. A partir daí... o silêncio logo seguido do eclodir do lip do meu lado esquerdo em jeito de orquestra de metais. O Bruno gritava e esbracejava tipo louco quando passei por ele. Eu não. Vivi estático sobre a minha montada, apenas corrigindo a trajectória com pequenas pressões ora na ponta dos dedos ora nos calcanhares, ora mais sobre o pé esquerdo, ora mais sobre o direito. Percorri então todo aquele imenso corredor de cores, sons e vida. Olhei para a prancha que se mantinha incrivelmente seca apesar de envolta em mar revolto, e depois para cima. O branco do foam tinha mudado de cor e o sol a pique fazia daquele tecto o mais belo dos vitrais... talvez por estar reservado a uns quantos previligiados, eu incluído apesar das recentes blasfémias.
A onda foi-se tornando mais pequena e saí imaculado do seu interior bafejado por um anjo de hálito doce.
Abusando da sorte apontei para a praia e após um bottom já em esforço entrei profundamente de rail na parede côncava que me ladeava. Milhares de gotículas se espalharam em meu redor e o offshore manteve-me sempre a vista lúcida mesmo quando já tudo parecia água. Pareceu-me que no mesmo instante tudo se recompôs e voltei a ter o verde do meu lado... subi a ladeira e deixei-me afundar no contra ventre.
O resto da surfada não passou do mais épico que poderia pedir. Ondas power, direitas e esquerdas, manobras de linha e uma velocidade que por diversas vezes fez vibrar as quilhas e produzir um assobio tal brigada de trânsito em cenário de excesso e respectiva coima.
Regressámos aos carros quase 3h depois, exaustos. As escadas pareceram-me bastante mais íngrimes mas a tranquilidade estava agora comigo... despedi-me do Bruno e hoje lá nos reencontrámos no mesmo local.
As ondas cairam para metade e só havia esquerdas. Os tempos entre séries era agora bastante maior e metemos a conversa em dia... volta não volta, lá vinha 'aquela de ontem' à baila.
Estou todo rôto nóvamente. Mas feliz!!!! Qualquer dia tenho mesmo que arranjar emprego... ;-)